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Três da manhã é quando muitos índios Kichwa acordam para se sentarem juntos na Amazônia equatoriana e compartilharem tabaco e outras ervas antes de irem para suas lavouras – campos agrícolas – e começarem seus dias. É nesse momento, pouco antes do nascer do sol, que suas histórias ancestrais são contadas e recontadas, para garantir que as informações contidas sobrevivam para as gerações futuras.
Os Kichwa, como muitos grupos indígenas da Amazônia, estão presos em meio a realidades passadas e presentes. Por um lado, eles são os destinatários da migração reversa das cidades, com ex-membros da comunidade e outros moradores da cidade retornando aos seus sistemas alimentares tradicionais e práticas de cura; por outro lado, os idosos Kiwcha, que nas gerações anteriores viveram bem mais de 100 anos, agora costumam morrer aos 60 anos. E embora “queremos fortalecer a economia, queremos promover a indústria”, disse Dary Aguinda, presidente da Associação de Mulheres Kichwa Amukina, suas frutas e vegetais orgânicos são frequentemente subvalorizados nos mercados, em comparação com a produção ampliada através do uso de pesticidas.
Podemos dizer que a realidade que Aguinda descreve reflete a do bioma amazônico como um todo: lutando para manter a saúde de seu passado enquanto navega para um futuro que demanda – e deseja – rentabilidade econômica, com todos as rugas de sua integração em sistemas globais suavizadas.
É possível preservar a identidade ecológica e cultural desse precioso bioma e, ao mesmo tempo, integrá-lo a um mundo que exige cada vez mais de seus recursos?
Durante três dias, o GLF Amazônia: O Ponto de Inflexão – uma conferência online de apresentações e discussões científicas, políticas e culturais de quase 280 palestrantes – procurou identificar soluções para como esse desafio dicotômico pode ser resolvido. Nos primeiros dois dias, uma série de táticas foi identificada: mapeamento local e via satélite, acesso à tecnologia e Internet, sistemas agroflorestais, inclusão de pequenos produtores em políticas de produção livre de desmatamento, treinamento de bombeiros locais, mais investimento privado e financiamento, e muito mais. (Leia os resumos dos dois primeiros dias aqui e aqui.)
Mas o evento culminou com a apresentação de soluções, ou melhor, da base que deve ser estabelecida para garantir a sobrevivência da maior floresta tropical do mundo: melhor liderança e vontade política em todos os níveis que colocam a vida da Amazônia e seus habitantes indígenas à frente de políticas executáveis.
“Há uma necessidade urgente de os tomadores de decisão em todo o mundo, e particularmente na região, agirem agora para evitar o desmatamento, especialmente em áreas que já estão atingindo pontos de inflexão”, disse Carlos Nobre, copresidente do Painel Científico da ONU para a Amazônia e um dos maiores especialistas no bioma.
“A Amazônia está passando por mudanças irreversíveis para outros estados degradados de vegetação e configurações da paisagem, colocando em risco os serviços essenciais prestados pela Amazônia às populações locais, regionais e do globo.”
Em um breve discurso resumindo o estado do bioma, Nobre, que cunhou o conceito de ‘ponto de inflexão’ da Amazônia décadas atrás, observou as muitas mudanças já ocorrendo: temporadas de seca que são três a quatro semanas mais longas do que na década de 1980, temperaturas médias que são 2 a 3 graus mais altos, diminuição da precipitação, redução acentuada na evapotranspiração e reciclagem da água e, o mais preocupante, áreas degradadas agora emitem mais carbono do que capturam.
Se o bioma Amazônia coletivamente atingir seu ponto de inflexão – isto é, o ponto em que seca e transforma-se em um ecossistema semelhante a uma pastagem – 30% da floresta ainda permanecerá, devido às chuvas que vêm dos Andes, segundo Nobre. No entanto, essa perda de 60 a 70% resultaria na liberação de mais de 250 bilhões de toneladas de carbono, acelerando a mudança climática e uma cascata de outras catástrofes ecológicas ao redor do mundo, incluindo o aumento de doenças infecciosas emergentes, como COVID-19. “A situação parece ser terrível”, ele alertou.
Além de pedir mais liderança, ele ressaltou que os paradigmas de desenvolvimento existentes precisam ser reconfigurados para causar menos danos ambientais, e que o conhecimento indígena e local sobre como usar os sistemas agrícolas, aquáticos e agroflorestais da Amazônia devem sustentar essas mudanças de paradigma.
Globalmente, os povos indígenas recebem menos de 1% de toda a ajuda à mitigação do clima, apesar de serem os guardiões de 80% da biodiversidade florestal remanescente do mundo.
Ruben Lubowski, economista-chefe de recursos naturais do Fundo de Defesa Ambiental (EDF), ecoou a dependência de uma mudança de política bem-sucedida na inclusão de povos indígenas ao falar no lançamento do evento do Green Gigaton Challenge, uma nova iniciativa que visa mobilizar financiamentos para apoiar a redução de um gigaton de emissões anualmente até 2025 através da conservação e restauração florestal.
Entre 2004 e 2012, a produção de commodities agrícolas na Amazônia aumentou, mas a conservação do bioma ainda melhorou, disse ele, provando que o desenvolvimento pode ocorrer com segurança com políticas adequadas. Mas quando mudanças políticas e retrocessos na aplicação da lei e no financiamento começaram a ocorrer, qualquer continuação das reduções de emissões foi associada ao estabelecimento de áreas protegidas e territórios indígenas, que atualmente cobrem cerca de 45% da Amazônia.
“Quando falamos de escala, a questão realmente importante é que estamos impulsionando a mudança em um nível sistêmico e holístico”, disse ele. “Grande parte da durabilidade [da conservação] é uma prova do papel dos povos indígenas na proteção de suas terras diante de enormes desafios, especialmente durante o governo Bolsonaro nos últimos anos.”
“A proteção das florestas anda de mãos dadas com políticas, e especialmente, políticas para salvaguardar os direitos de grupos vulneráveis, como comunidades indígenas”, disse Maria Victoria Suarez Davalos, oficial do programa REDD + da ONU para o Meio Ambiente que está coliderando o Green Gigaton Challenge. Esses direitos, disse ela, vão desde à terra e a posse até o direito participativo, financeiro e o mais básico direito à voz.
A legislação está se movendo atualmente na direção oposta, porém, com o roubo de terras e o desmatamento de territórios indígenas em ascensão. Selma Dealdina, diretora-executiva da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), descreveu como projetos de mineração no estado do Pará estão ameaçando 800 famílias de serem expulsas de suas terras – uma ilustração do “estado de guerra” que o governo brasileiro declarou aos povos indígenas. Globalmente, 40% dos defensores ambientais mortos são indígenas.
“O racismo institucional e estrutural exclui os povos indígenas e negros dos processos para que não possamos permanecer em nossos territórios que ocupamos há muito, muito tempo”, disse Dealdina. “Tentamos preservar para que a água não seja poluída, as árvores não sejam derrubadas e a proteção da terra continue.”
“Não se pode ter mineração sem destruir a terra”, disse Manuel Pulgar Vidal, ex-ministro do Meio Ambiente do Peru. “Isso criou feridas graves na Amazônia.”
No último dia do evento também houve o lançamento de um comunicado intitulado “Proteja a Amazônia! A vida é uma só e está em nossas mãos,” preparada por líderes e organizações indígenas como uma chamada à ação para que os líderes globais abordem a emergência de proteger a Amazônia e suas terras indígenas. O comunicado, que será levado à COP 26, prevê as seguintes oito ações:
- Resolver a insegurança jurídica da posse de terra
- Adotar Uma Saúde
- Realizar uma recuperação justa, equitativa e sustentável da COVID-19
- Coordenar a proteção e restauração da Amazônia
- Os signatários do Acordo de Paris e da Convenção sobre Diversidade Biológica devem trabalhar juntos em um plano de ação coerente.
- Os líderes corporativos devem receber aconselhamento científico e cumprir as metas ambiciosas de neutralidade do carbono e desmatamento zero
- Os mercados de importação e os consumidores devem garantir que as empresas respeitem os direitos humanos e ambientais
- As organizações da sociedade civil devem se unir pela Amazônia e seus povos
Os líderes políticos, que falaram no último dia, apelaram repetidamente para a necessidade de novos modelos econômicos – economias circulares, bioeconomias, transições de energia renovável, ecoturismo – a fim de colocar o bioma no caminho da sobrevivência em vez da destruição.
“Todos os governos da Amazônia têm um grande desafio para a transição para a produção e consumo sustentáveis”, disse Luis Hidalgo Okimura, governador da região de Madre de Dios no Peru. “É baseado em um conceito que combina a produção agrícola sustentável e economicamente viável com uma melhor preservação da floresta, para facilitar o desenvolvimento sustentável que melhora a subsistência da população e também a proteção ambiental.”
“A Amazônia exige um modelo que assuma que a floresta tropical será saudável, em pé e forte, e que respeite os direitos de seus povos”, resumiu Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente do Brasil.
Silva classificou as iniciativas necessárias para alcançar tal modelo em três grupos: comando e controle para combater atividades ilegais e a exploração na Amazônia, regulamentações territoriais que protegem a Amazônia do desmatamento e demarcam terras indígenas e ações que apoiam a boa formulação de políticas, como técnicas e agências científicas como o Painel Científico da ONU para a Amazônia coliderado por Carlos Nobre.“Este é o momento de repensar como vamos trabalhar de uma maneira diferente para desenvolver técnicas baseadas no que a natureza nos mostrou”, disse Benki Piyãko, um líder dos povos Asháninka do Peru. “Como indígenas… temos provado que sem a terra não somos nada, sem o conhecimento não somos nada.”